Trabalhos Científicos

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AQUILO QUE PERMANECE DE FREUD

PSICANÁLISE. Terminou o tempo das terapias alternativas, percebe-se a vontade de retornar aos mestres, mas os sofrimentos dos indivíduos mudaram e servem novas regras.
Umberto Galimberti
 
Parece que esteja em fase terminal a moda das terapias breves (quatro ou cinco encontros “porque preciso falar), das terapias via internet, ou por telefone (para se ter alguns conselhos a respeito de um problema que não se sabe como enfrentar). Parece também em via de extinção o entusiasmo pelas terapias alternativas, da hípicoterapia à musicoterapia,as técnicas de relaxamento as massagens com mil nomes e variações. E neste evaporar-se das ilusões (há quem use trinta anos para se arruinar e depois pretende se curar em três semanas). Parece uma retomada à antiga prática da psicanálise com todo o seu rigor e sua seriedade. Devemos nos alegrar se é verdade que não se obtém algum resultado apreciável seguindo atalhos que a cultura da facilitação nos habituou há algumas décadas.
Mas, entre a antiga clientela dos consultórios psicanalíticos e a nova que a freqüenta hoje, alguma coisa mudou radicalmente, porque a cultura americana da eficiência, da visibilidade, do sucesso contagiou também nós europeus transformando a qualidade do sofrimento psíquico a tal ponto a modificar a forma das neuroses, do modo como a conhecemos lendo os textos de Freud e de seus ortodoxos e heterodoxos discípulos.
Os psicanalistas devem se dar conta desta transformação para não falir nos encontros com os “novos” pacientes. A psiche, de fato, não é algo de imutável, mas profundamente imersa na história, da qual se deixa contagiar até os seus mais íntimos desdobramentos. Então, é inevitável, para seguir a alma nos seus percursos, ora lineares, ora tortuosos, tornar-se sensíveis à história.
Tome-se como exemplo o conceito de “neurose” que como Freud descreveu é um conflito entre o desejo que quer infringir a norma e a norma que tende a inibir o desejo. Como conflito, a neurose encontra o seu espaço de expressão naquilo que podemos chamar de “a sociedade da disciplina”, como era aquela de Freud que se alimentava da contraposição permitido/proibido. Um sistema que regulava a individualidade até os anos 50 e 60.
Depois, a partir dos anos 70, por influência da cultura americana, a contraposição entre o permitido e o proibido declina, para dar espaço a uma contraposição bem mais dilacerante que é aquela entre o possível e o impossível. Que significa tudo isso aos efeitos do sofrimento psíquico? Significa que no relacionamento entre indivíduo e sociedade, a medida do indivíduo ideal não é mais dada da docilidade e da obediência disciplinar, mas da iniciativa, dos resultados que se está em grau de obter na máxima expressão de si.
O indivíduo não é mais regulado por uma ordem externa, de uma conformidade à lei cuja infração gera senso de culpa, pela qual a vivência da culpabilidade era o núcleo central do sofrimento psíquico, mas deve apelar aos seus recursos internos, as suas competências mentais para atingir aqueles resultados a partir dos quais será avaliado, adquirindo por efeito daquela avaliação, um adequado ou inadequado conceito de si.
Desse modo, depois dos anos 60 o sofrimento psíquico mudou radicalmente de forma: não mais como um conflito neurótico entre norma e transgressão com conseqüente senso de culpa, mas em um cenário social sem norma, porque tudo é possível. Então, o núcleo depressivo passa a se originar de um “senso de insuficiência”, isto é, o que se poderia fazer e não se é capaz, ou não se consegue fazer segundo as expectativas dos outros, a partir das quais cada um mede o valor de si mesmo.
Essa mudança estrutural do sofrimento psíquico é possível ser reconhecida também na sintomatologia onde a tristeza e a dor moral, o senso de culpa, passam em segundo plano, em detrimento da ansiedade, insônia, inibição, em uma palavra a fadiga de ser si mesmo. E isso porque na sociedade atual a norma não é mais fundada, como no passado, sobre a expectativa da culpa e da disciplina interior, mas sobre a responsabilidade individual, sobre a capacidade de iniciativa e sobre a autonomia da ação.
O sofrimento psíquico tende a se configurar não mais como uma perda da alegria de viver, mas como uma “patologia da ação”, o seu eixo sintomatológico se transfere da tristeza à inibição, à perda de iniciativa, em um contexto social onde realizar é reconhecido como critério decisivo para medir e selar o valor de uma pessoa.
A partir daí, a corrida aos novos medicamentos antidepressivos (aqueles que vieram depois: os antidepressivos tricíclicos) que foram reconhecidos como referencial terapêutico eleito para suprimir a insônia, a ansiedade paroxística, ou mesmo, a perda mais ou menos grave de iniciativa, da inibição, da ação, do sentimento de falência e derrota.
Fatores que entram em implacável colisão com o paradigma de eficiência e de sucesso que a sociedade atual considera essencial para definir a dignidade e o significado existencial de cada um de nós. Por efeito da mudança das expectativas sociais, hoje o sofrimento psíquico não se apresenta mais como um conflito e, portanto, como uma neurose, mas como uma falência na capacidade de “empurrar a todo gás” o possível até o limite do impossível.
Quando o horizonte de referência não é subordinado àquilo que é permitido, mas ao que é possível, a pergunta que se coloca ao limiar do sofrimento psíquico não é mais: “tenho o direito de cumprir essa ação?” mas, “sou capaz de cumpri-la?” Aquilo que se exclui na norma atual da sociedade é o conceito de “limite”. E na ausência de um limite, a vivência subjetiva não pode que ser de inadequação, quando não de ansiedade, de inibição. Traços que entram em colisão com a imagem que a sociedade exige de cada um de nós.
E na consciência dessa cruel falência sobre o plano da responsabilidade e da iniciativa ou também sobre o plano da falta do benefício de uma outra possibilidade , amplifica os confins do sofrimento e da inadequação que os modelos sociais dominantes tornam ainda mais dolorosos e insanáveis.
Se a seriedade da psicanálise parece ter hoje a sua vingança sobre as terapias breves para não dizer “faça você mesmo”, análoga seriedade se exige da psicanálise, ao seguir as mudanças ocorridas na nossa história nos últimos trinta anos a respeito do modo de conceber o indivíduo e a possibilidade de sua ação.
A primeira mudança se registrou nos fins dos anos sessenta, quando a palavra de ordem de um inteiro continente jovem era: “emancipação” ao slogan do “tudo é possível”, portanto, a família é uma câmara de gás, a escola um quartel, o trabalho uma alienação e a lei um instrumento de imposição do qual devemos nos liberar (“proibido proibir”).
Uma liberdade de costumes até então desconhecida aliada ao progresso das condições materiais e das novas expectativas de vida se tornam uma realidade tangível ao longo dessa década. Se a loucura no senso comum dos primeiros anos da década de setenta aparece como símbolo da opressão social e não mais como uma doença mental é devido ao fato que tudo é possível: o louco não é doente, é só diferente e sofre exatamente pela falta da aceitação da sua diversidade.
Essa cultura gerada na revolução juvenil de ’68 havia sido pensada em termos sociais e se inicia com um estranho jogo de confluência dos opostos na mesma lógica de importação americana, jogada, porém a nível individual, aonde mais uma vez tudo é possível. Mas, em termos de iniciativa, de performance, de eficiência, de sucesso, além de cada limite, pelo contrário, com conceito de limite levado ao infinito.
Por isso hoje, nos interrogamos: qual é o limite entre um retoque de uma cirurgia estética e a transformação em andróide de Michel Jackson, entre uma habilidosa gestão dos próprios humores através dos psicotrópicos e a transformação em robôs químicos, entre o reconhecimento dos direitos dos homossexuais e o direito à adoção, o direito à saúde e ao prolongamento da vida, e à manipulação genética?
Isso somente para dar exemplos que nos demonstram como as fronteiras da pessoa e aquela entre as pessoas determinam um tal estado de alarme a não saber mais quem é quem. Como escreve Augustin Jeanneau em “Les risques d’un’epoque ou Le narcissisme Du dehors”(1986): “A liberação sexual substituiu a preocupação de errar com a de ser normal”. Expressão sintomática da mudança semelhante àquela observada por Vidiadhar S. Naipaul,Alla curva del fiume”(1979): Não podia mais me resignar ao destino. O meu destino não é ser bom segundo a nossa tradição, mas produzir riqueza. Mas de que modo? O que poderia oferecer? A agitação começa a me devorar por dentro. Então, psicofármacos amigos meus, ou se preferirem cocaína”.
Nessa citação é possível fazer um paralelo que se aproxima a uma conclusão complementar. Hoje, seja o sofrimento psíquico ou a toxicodependência, por diferentes que possam parecer, exprimem a patologia de um indivíduo que não é nunca suficientemente si mesmo, nunca suficientemente pleno de identidade, porque se tornou excessivamente indeciso, hesitante e ansioso. Portanto, o sofrimento psíquico e toxicodependência são os dois lados da mesma patologia de insuficiência.
A vivência da insuficiência causa primária dos sofrimentos dos dias atuais, ativa a dependência psicofarmacológica, onde a promessa de onipotência se assemelha, não por acaso, àquela que populariza a droga. O dependente de fármaco e o toxicodependente são, de fato, duas versões do tipo humano que infringe a barreira entre o “tudo é possível” e o “tudo é permitido”.
Esses radicalizam a figura do indivíduo soberano e pagam a conta com a escravidão da dependência que é o preço da liberdade ilimitada que o indivíduo se atribui. Mas, os novos antidepressivos são em certo sentido,os mais insidiosos das drogas, porque as moléculas colocadas hoje no mercado da indústria farmacêutica contra o sofrimento psíquico alimentam a imagem de poder manipular ilimitadamente a própria psiche, sem os riscos da toxicidade das drogas ou os efeitos colaterais dos velhos antidepressivos.
Desse modo, o psicofármaco, suprimindo o sintoma do sofrimento, que é um bloqueio na corrida desenfreada a qual somos chamados, acelera a corrida rendendo-nos perfeitamente homogêneos à demanda social. Assim, podemos dizer que a farmacologia é o pior dos males, porque cala os sintomas, proibindo que sejam escutados, induz o sujeito a superar a si mesmo, sem ser jamais si mesmo, mas somente uma resposta aos outros, às exigências de eficientismo da nossa sociedade, com conseqüente desertificação da vida interior. A homogeneização das normas sociais nos tornam robôs despersonalizados e autômatos impessoais ao invés de sujeitos capazes de ser si mesmo e de refletir sobre as contradições das feridas da vida e sobre a fadiga de viver.
Em 1887, um ano antes de descer na escuridão da loucura, Nietzsche anunciava profeticamente o advento do indivíduo soberano “resgatado da ética e da tradição”. Hoje, cem anos após a morte de Nietzsche, podemos dizer que a emancipação talvez, nos salvou das chamas do senso de culpa e do espírito de obediência, mas inegavelmente, nos condenou ao excesso de eficiência e das iniciativas. E assim, a fadiga depressiva superou a angústia neurótica.
Se hoje os pacientes abandonam os atalhos ilusórios das terapias breves e retornam à seriedade da psicanálise, é recomendável que os psicanalistas além de aprofundarem o olhar na interioridade da alma, ergam os olhos também para o social, cuja transformação poderia sugerir que o sofrimento psíquico talvez não seja mais pensável como um tempo, em termos de tristeza e sentimento de culpa, mas de capacidade e incapacidade. A capacidade de ser si mesmo além das demandas sociais de eficiência, iniciativa, rapidez de decisão e de ação das quais não é dado vislumbrar o limite. E a angústia aumenta.
                                               Fortaleza, 24/10/07
                                               Tradução livre do texto: Arminda Rodrigues










                                    

       

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